Tentando aproximar a Ásia da América do Sul e vice-versa

As Filhas Sem Nome, de Xinran, Editora: Companhia das Letras, 2010, tradução da versão inglesa

20 de maio de 2010
Por: Naomi Doy | Seção: Livros e Filmes | Tags: condição feminina, culinária Huaiyang, Nanjing, política do filho único | 2 Comentários »

xinran_filhas Este novo livro da nossa já conhecida Xinran é delicioso. Engajada, sobretudo na luta pela melhoria da condição das mulheres chinesas, ela conta a história real de três jovens entre 16 e 20 anos, transformadas em irmãs para efeito de ficção, que saem do campo para tentar a sorte na cidade grande. Ao narrar a trajetória das moças, Xinran nos leva simultaneamente numa saborosa viagem através dos gostos e cheiros da rica comida de rua de Nanjing, e da sutil culinária Huaiyang e Suzhen do centro-sudeste da China.

A história se passa entre 2001 e 2004, bem recente portanto. Há alguns paradoxos na ficção, como o fato de as meninas originarem de uma mesma família de seis filhas na China, onde a política do filho único era, e ainda é, rigorosamente policiada, mas pouco efetiva no meio rural. A família delas teria, entre os parentes, dois funcionários chefes da Brigada de Produção, encarregada da política de controle de natalidade. O que a pouparia da fiscalização severa e de multas. Intriga também o fato de que elas venham de zonas rurais a apenas três horas de ônibus de Nanjing, Capital da rica Província de Jiangsu, no megapólo industrial e comercial do delta do Rio Yangtsé. E ainda assim, elas serem de uma ingenuidade, inocência e ignorância inacreditáveis. Como se tivessem saído de um dos romances chineses da escritora norte-americana Pearl S. Buck (A Boa Terra, Peônia), populares nos anos 1940-50.

Talvez Xinran quisesse enfatizar, dessa maneira, a disparatada distância existente, mesmo nos dias atuais, entre as metrópoles superdesenvolvidas e o vasto interior chinês, onde a comunicação viária e midiática ainda são muito precárias. Onde é um castigo dos céus nascer menina. Onde duas meninas na família significam desgraça de cão danado para qualquer pai. Meninas do campo são tão desvalorizadas que nem merecem receber nomes. São rotuladas apenas como filha Número Dois, Três, Quatro…

Neste livro, são as irmãs Três, Cinco e Seis que conseguem, com a ajuda de um tio compadecido, migrar para Nanjing, tentando fugir da pobreza e da humilhação. Compadecidos, nós também acompanhamos os lances da aventura delas e do tio pelas ruas de Nanjing à procura de onde ficar, comer e trabalhar. Enfrentando sobressaltos, fome, choque cultural. Mas encontrando também muita solidariedade e calor de nanjineses compassivos de plantão.

Apesar das incertezas e apreensões, elas vão encontrando seus caminhos. Ao desvendar mistérios e realidades cruas da vida através de olhar cândido e inocente, vão também descobrindo as regras e malícias para contornar a dureza de subempregos. Ao abrir os caminhos de Nanjing às três irmãs, Xinran apresenta aos leitores também as delícias dessa cidade.

É através dos olhos e do coração cheios de saudade da escritora chinesa exilada em Londres que vamos nos deleitar com os recantos medievais preservados desta encantadora e imperial cidade intramuros. E pelo mapa encartado no livro, vamos seguindo e saboreando os petiscos típicos Jinling, o pato salgado seco ao vento, os mil espetinhos salgados ou doces: de bolinhos de carne com legumes, cubos de tofu fedorento (fermentado) frito, bolinhos de arroz moti. Ensopadinhos de wanton, de tartaruguinhas de casco mole, ou de noodles com camarãozinhos do delta do Yangtsé e frescos legumes e verduras de Zhouzhuang; pelas ruas ao redor do Templo de Confúcio (Fuzi Miao), à beira do Rio Qinhuai; nas casas de chá, nos quiosques, nas barraquinhas de rua. Ou então no esfuziante, remodelado e chique distrito da Torre do Tambor, no Lion’s Bridge, e suas lojas e restaurantes que rivalizam com os melhores de Xangai e Beijing.

Constantemente, porém, Xinran entremeia a história com incidentes que traem contundentes denúncias sobre a situação subumana e inferior das mulheres, ou ainda o diuturno policiamento ideológico sobre os cidadãos em geral e os sofridos pequenos comerciantes em particular. A corrupção furtiva a qual homens decentes são obrigados a se dobrar. A delação interesseira que pode entregar amigos para a polícia.

Mas quando fala do povo, da sua cidade natal, e da culinária local, Xinran o faz com muito amor e afeto. E nos deixa com ganas de caminar pelas ruas da pitoresca metrópole, saborear seus ares e seus aromas e sentir o calor da sua estóica e brava gente – tão incrivelmente solidários e otimistas apesar das adversidades.


2 Comentários para “As Filhas Sem Nome, de Xinran, Editora: Companhia das Letras, 2010, tradução da versão inglesa”

  1. Marília Mosch
    1  escreveu às 12:03 em 17 de janeiro de 2011:

    Olá!

    Acabei de ler esse livro ontem e além de emocionar muito, o livro me ajudou a decidir a aprender mandarim! Pra poder entender melhor as riquezas culturais contidas ali.

    Escrevi em meu blog uma pequena resenha enfocando o aspecto das condições de vida das mulheres na China hoje, que me interessou bastante durante a leitura.

    O link para o texto é http://bit.ly/gJasmb

  2. Paulo Yokota
    2  escreveu às 13:54 em 17 de janeiro de 2011:

    Cara Marília,

    Obrigado por ter acessado o meu site. Seguindo a sua sugestão examinei o seu e gostaria de parabenizá-la. Muitos livros foram escritos sobre as condições das mulheres na China, este país que conta com quase um quinto da população mundial. Quanto ao mandarim, encontro muitas pessoas que estão com seus filhos estudando esta lingua. Mas, V. deve saber, o povo naquele país fala cantonês, pequenês etc. e o mandarim foi criado para permitir que a elite se comunique entre eles. Aquí também no Brasil há um mito que todos falam português, e trabalhei muito no meio rural dos confins deste país, e tive que usar muitos interpretes para se comunicar com o povão. Ainda que me interesse sobre as condições das mulheres, não é a minha praia, infelizmente. Mas pode contar com toda a minha simpatia, pois sempre estive do lado das que considero injustiçadas.

    Paulo Yokota