Jabulanis e Outras Bolas
1 de julho de 2010
Por: Naomi Doy | Seção: Depoimentos | Tags: 2010 e 2014, Copas de 1950, e torcida pra frente Brasil
1950. Para os fanáticos do pé-de-bola, ano fatal. Naqueles tempos, bola de futebol para peladas ainda era feita de couro legítimo, com uma câmara-de-ar de borracha, interna, e tinha uma válvula. Como um pneu. De tempos em tempos, era preciso enchê-la de ar com uma bombinha. A câmara-de-ar podia ser trocada quando ficava gasta e frouxa ou se, por algum acidente, furasse. A bola de couro tinha uma abertura com ilhoses e fivela, como num tênis, para retirar e colocar a câmara, popularmente chamada de bexiga. Os gomos de couro vinham costurados com fios grossos, aparentes.
Era uma bola pesada e macia ao mesmo tempo, e não machucava o pé. Mesmo depois de muito usada, conservava o cheiro de couro. Ficava cinzenta quando a pintura branca ia se desgastando. Para conservá-la, os meninos derretiam sebo de boi e hidratavam os gomos com um pano, cuidadosa e pacientemente. Pois bolas de futebol eram muito caras então, de couro legítimo, feitas quase artesanalmente. Para garotos em geral, tratava-se de objeto de desejo raramente conquistado. Às meninas, só nos era permitido observar de longe, sem tocar, que dava azar.
De longe, nas longas tardes de verão, quando amiguinhas falhavam, eu ficava sentada à sombra de paineiras vendo meus irmãos e colegas suando, descalços, atrás de uma “jabulani” de couro gasto. Até que eu jogava bem melhor que muito moleque então. Mas admitir isso, quem havia de? Quando eles ficavam sofrivelmente em baixa e não conseguiam catar mais nenhum perna-de-pau pela redondeza, eu era benvinda para tapar a vaga no time de um irmão mais velho, de goalkeeper preferivelmente. Porque ninguém queria passar pelo vexame de levar gol de menina, larga a mão!
Em 1950, tínhamos como vizinhos de cerca, do lado esquerdo, uma família de descendentes de imigrantes italianos, os Fiorillo. Quatro belos rapazes e uma linda moça. A casa deles vivia cheia de alegres e saudáveis jovens. Nós, crianças, adorávamos quando a mãe, dona Maria Fiorillo, deixava a portinha dos fundos discretamente aberta, quando chegava à época dos cajus amadurecerem. Que era para que não ficássemos pulando a cerca. Ou quando o “seu” Matias Fiorillo, pai, dono da venda que ficava na parte da frente da casa deles, “esquecia” uns rebuçados em nossa mão, junto com o troco.
Pois num belo domingo de tardinha, dia 16 de julho de 1950, encontramos quatro rapazes marmanjos chorando feito bebê, debaixo do frondoso cajueiro, no fundo do quintal deles, que dava para o nosso quintal. Sem entender direito, fiquei com imensa pena deles, principalmente do Oswaldo, rapaz bonito de coração idem. À noite, minha mãe comentava, incrédula, com meu pai: ”Imagine, por causa de futebol, faça o favor!”
Ficar, porém, imune a essa torcida que chora, canta e contagia, quem há de? Meados de junho, 1970, São Paulo: lembro-me de minha mãe colocando discretamente uma bandeira brasileira na janela do quarto dos meus dois irmãos caçulas. Bandeira que ela tinha comprado sorrateiramente na Casa Mizumoto, em Pinheiros. Que era para fazer surpresa quando os meninos chegassem de faculdades no interior. E que idolatravam o Pelé.
Os tempos progridem, a Jabulani hoje é lisinha, brilhante e sem costuras, de couro sintético, projetada com tecnologia de última geração. Parece dura e inflexível, no entanto dizem que é leve e bem domável. Acredito que eu, que há tempos já não driblo nem pedalo, me daria muito mal. Para alívio e alegria geral, os da nossa seleção estão se dando bem com ela.
Em 2014, Schiaffino, Ghiggia, Obdulio Varela, os Fiorillo e minha mãe serão lembranças cada vez mais remotas. Outros Kakás e Jabulanis virão. Mas a Copa vai ser, de novo, nossa. A torcida é para que a Taça do hepta, também!!