O Grão: Ciclo de Vida e Morte Segundo Petrus Cariry
28 de julho de 2010
Por: Naomi Doy | Seção: Livros e Filmes | Tags: cinema cearense, estreia em longa de Petrus Cariry | 2 Comentários »
Por se tratar de cineasta ainda desconhecido no sul, assistir a este filme foi uma surpresa bastante agradável, numa estreia sem alardes em São Paulo. É a história de pequena e humilde família em vilarejo não muito distante de Fortaleza, contada com simplicidade e em lento ritmo de espera. Como se a vida fosse um longo e silencioso tempo de espera para a morte.
Esse tempo age de forma distinta para cada personagem. Há um senso de resignação dos adultos diante de um novo tempo, ou diante da iminência da morte: na avó adoentada que prepara o neto para a separação que ela pressente, na filha e no genro presos numa vida de desesperança e imobilidade. Para jovens ou crianças, porém, esse tempo é vago e tênue: o neto Zeca, que ouve passivamente a história contada pela avó, ou a neta Fátima que prepara, com doce enlevo e expectativa, o enxoval para o seu casamento.
O filme começa com uma tomada feita de dentro do veículo, percorrendo uma estrada longa e vazia pela planície da caatinga cearense. Nenhuma presença viva, apenas a vegetação rala, ao longe algumas elevações. Seria a Serra do Baturité? Tudo é envolto em silêncio e vazio. O corte repentino revela o menino pescando à beira de um açude. Na verdade, parece esperar o pai trazendo umas cabras que ele negocia com o açougueiro da vila. A paisagem ao redor do açude é de surpreendente beleza, com belas carnaubeiras e um verdor que contrasta com a aridez e monotonia que nos acompanhou pela estrada.
A câmera, fixa e imóvel, vai registrando a marcha da pequena comitiva de pai, filho e cabras pela estradinha, até estacionar ao lado de casinha branca com varanda. No quintal atrás da casa, avó, mãe e neta fazem trabalhos de artesanato, cujo produto também é negociado na pequena venda da vila. Protegidas do sol sob um pano leve que esvoaça continuamente ao vento, as três mulheres tecem, cortam, enrolam fios e bordam, diligentemente, em silêncio, em compasso de espera. Como as três Parcas fiandeiras que teciam os destinos das pessoas e presidiam os três momentos culminantes da vida humana: nascimento, matrimônio e morte. Com alusões ao sincretismo religioso brasileiro, O Grão mistura parábola bíblica, fábula indiana, benzedeira, mitologia romana. Mas sem apelar à violência, erotismo, nem a efeitos pirotécnicos.
A beleza do cotidiano é retratada com impressionante simplicidade, em tomadas e enquadramentos fixos, imóveis. O silêncio é fundamental para transmitir uma calmaria, quebrada pelo sino da cabra que lidera o rebanho, pelos pássaros em certas horas do dia, pelos grilos ao anoitecer. Uma calmaria de tempo que transcorre lento e modorrento. Nas tomadas de interiores, o jogo de sombra e luz produz um efeito dramático claro-escuro insinuando que algo está ocorrendo ou prestes a ocorrer. O tampo gasto da mesa da cozinha, o velho fogão à lenha, um caldeirão de ferro, uma cadeira no quarto vazio. Lembram interiores e natureza morta de quadros flamengos, belos e sugestivos no seu silencioso vazio. O diretor adota uma técnica original de mostrar o interior da casa e o movimento das pessoas dentro dela, a partir da câmera imóvel na varanda: no primeiro plano, na varanda, passa Zeca, depois, através da porta, se vê parte da sala, onde o pai assiste à televisão; além de outra porta, vê-se movimentos no fundo da casa. Dá uma perspectiva de profundidade, ao mesmo tempo em que nos faz participar da intimidade das cenas.
“As pessoas adoram complicar as coisas simples… A essência da vida pode ser inesperadamente simples. Eu quis eliminar os elementos dramáticos, expressando tristezas sem lágrimas, capturando o sentido da vida sem nenhuma emoção intensa.” Poderiam ser palavras de Petrus Cariry referindo-se a este filme. Na verdade, foram ditas por Yasujiro Ozu.
O menino Zeca tem a companhia constante de um filhote de cachorro. Quando resolve dar um nome ao bichinho, uma amiguinha sugere Mu, que remete a nome para bois ou vacas. O kanji “mu”, do ideograma chinês, significa “o vazio, o nada”. Estarei delirando?
Vale a pena conferir o filme. Para um longa-metragem de diretor estreante, O Grão possui consistência bastante em enredo, direção, fotografia e atuação, e muita poesia, para vislumbrar rumos promissores para o cinema cearense e brasileiro.
Gostaria de agradecer a indicação do filme.
Prezada América, da minha parte também agradeço sua visita ao site.