Tentando aproximar a Ásia da América do Sul e vice-versa

Permanência e Impermanência das Coisas em Yasujiro Ozu

21 de julho de 2010
Por: Naomi Doy | Seção: Livros e Filmes | Tags: Abbas Kiarostami/Cinco dedicados a Ozu-2003; Era uma vez em Tóquio-1953, Pai e Filha-1949, Também fomos felizes-1951

Logo após os momentos finais de Tomi, sua mulher, Shukichi (ator Chishu Ryu), não suportando ficar no quarto onde filhos reunidos velam o desenlace da mãe, vai para fora de casa. Para o pequeno espaço contíguo à casa, donde se avista a bela Baía de Seto, colina abaixo. Intimamente, enxergamos mil pensamentos e reminiscências através do seu perfil e dos gestos mansos. A sensação de perda e vazio fugaz, misturada à lembrança recente da viagem um tanto atordoante a Tóquio, da qual ele e a mulher tinham acabado de chegar. Os anos de cumplicidade compartilhados, a paisagem imutável do mar que separa as ilhas de Honshu e Shikoku – que Shukichi tantas vezes contemplara com Tomi (atriz Chieko Higashiyama).

Os barcos a vapor continuam a deslizar levando e trazendo entes queridos que vão e vêm. O mar, as miríades de ilhas e ilhotas lá estão, como sempre estiveram. O som tão familiar do apito dos barcos, porém, agora soa angustiante e intolerável. Pelo rosto de Shukichi alternam-se sentimentos de aturdimento, melancolia, solidão: hakanai, munashii, aware-nai, simplesmente intraduzíveis. O vazio provocado pela sensação de atroz fugacidade, aquela vontade de “ser levado junto”.

Ozu foi mestre em captar tais momentos. Para ele, “atuar é não expressar as coisas, deixar coisas serem ponderadas, saboreadas. Aqueles que apreciam isso alcançam um estado transcendente”. Ele teve a sorte de encontrar atores como Chishu Ryu e Setsuko Hara, que apenas pelas nuances expressivas de seus rostos, olhar e corpos conseguiam exprimir alegria, dor, tristeza, solidão. Nas palavras de Ozu, “Setsuko Hara é uma pessoa admirável. Se houvesse apenas mais quatro ou cinco pessoas como ela…”

Chishu Ryu e Setsuko Hara

Deixando um lugar tão aprazível como essa casa em Onomichi, província de Hiroshima, com a esplêndida vista da Baia de Seto, Shukichi e Tomi tinham ido visitar os filhos em Tóquio, metrópole brilhante, cidade dos vencedores. Mas o que constatam foi bastante distante do que idealizavam: casinhas apertadas numa periferia atulhada, fumaças de indústrias, barulho de trens. Não há espaço nem tempo para os idosos. Pela primeira vez, experimentam a sensação de serem estorvos. O tempo dos jovens corre em descompasso com a dos idosos. Crianças, adultos e velhos obedecem a diferentes regras de tempo e modos. Embora, à medida que amadureçam jovens também mudarão. Essa é a lei da vida.

Enquanto esperam um ônibus em Tóquio, o casal pondera sobre essas implacáveis leis da vida, serenamente, sem revolta. Velhice é conformidade com a aceitação da fatalidade. Nada podemos contra essas leis da natureza, parece dizer Ozu.

Após os funerais, a nora (atriz Setsuko Hara) toma o trem de volta para Tóquio. Dentro do vagão, ela aperta nas mãos o relógio que pertencera à sogra e que Shukichi lhe oferecera como katami (lembrança de pessoa falecida). Seu olhar é de um misto de sentimento hakanai: um vazio, a vontade de ficar e ao mesmo tempo ser “levada junto”, o carinho do sogro, a pena de não ter curtido a sogra por mais tempo… Devagar, o olhar da atriz se ergue do relógio e olha diretamente para a câmera, para o espectador, como se quisesse compartilhar conosco esse vazio do efêmero. Enquanto isso, o tique-taque do relógio se confunde com o barulho cadenciado do motor de barcos a vapor que desliza pela baía. Que por sua vez se funde ao deslizar cadenciado do trem sobre os trilhos. É o Tempo que tudo devora e leva, mas que se repete e repetirá todos os dias, por todos os tempos.

Na sala de aula, na escola onde é professora, a filha caçula de Shukichi, Kyoko (atriz Kyoko Kagawa), olha o relógio de pulso. Dirige-se à janela: o trem levando sua afetuosa cunhada surge na curva, passa lá embaixo, paralelo à escola, e desaparece entre colinas. No olhar de Kyoko, também o sentimento munashii, vontade de ir junto, “ser arrebatada”: gratidão, saudade, vazio e solidão. São sensações que se sente e não se explicam em palavras, inerentes da cultura japonesa: o contemplar silenciosamente, integrando-se à natureza, às nuvens que se desfazem aos ventos que sopram às pétalas que caem às águas que correm, ao rochedo, musgos e areia, às almas, espíritos e sons. O cineasta Abbas Kiarostami conseguiu expressar essa essência em cinco longas tomadas feitas em uma praia do Mar Cáspio (Cinco dedicados a Ozu, 2003). São lentos takes de ondas indo e vindo; o tempo é indicado por claridades e sombras do sol, da lua e de nuvens, por latidos de cachorros e cantos de aves; ventos, intempéries e coaxar de sapos indicam estações do ano. São verdadeiros haikais expressos em imagens e sons. Os melhores filmes de Ozu são também pura emoção e poesia: cada enquadramento e tomada poderiam ser lidos como um haikai: a impermanência sobrepondo-se à imutabilidade das coisas.