A Rota do Chá e do Cavalo II
22 de outubro de 2010
Por: Naomi Doy | Seção: Livros e Filmes | Tags: documentário de Michel Noll, França-China 2007, TV5-Monde, “Sur la route légendaire du thé”
Colhidas de árvores nativas centenárias desde antes da era Cristã, a colossal demanda por folhas da Camellia sinensis provocou seu cultivo em larga escala nas regiões subtropicais amenas do sudoeste chinês. A colheita pode durar de 6 a 8 meses após as chuvas de monções, e é feita com triagem rigorosa das folhas por delicadas mãos femininas, a fim de preservar as plantas e a qualidade das folhas. Chineses sempre beberam infusões de chá verde fresco, mas para facilitar o transporte e a conservação, adotou-se o processamento de fermentação das folhas por secagem natural; quando adquiriam cor acobreada, interrompia-se a decomposição natural por calor – em forno, ou a vapor. O produto era então comprimido em bolos, ou em formas de discos, ou tijolos. As folhas assim processadas continuavam a fermentar, mesmo depois de acondicionadas e transportadas no dorso de mulas e cavalos em longas viagens, que duravam meses. O popular chá pu’er é processado até hoje dessa maneira.
Chama Dao, Rota do Chá e do Cavalo, era o caminho através do qual se comerciavam cavalos de guerra tibetanos, peles, tapeçarias etc., por chá, sal, açúcar, vindos do sudoeste chinês. Tornou-se via crucial de comunicação e comércio entre as culturas das atuais Yunnan e Sichuan, e Lhasa, no Tibete. Atingia até Pérsia e Mongólia, através de Butão, Nepal, Índia. Postos fiscais por onde passavam caravanas deram origem a vilas, povoados, e cidades. Pontilhados de templos, estátuas e locais de oração, todo o trajeto se impregnava de uma aura de religiosidade e fé das mais diversas seitas budistas, de etnias como han, dai, uighur, naxi, bai, hui. Esta rota atravessava o “teto do mundo” por mais de 4.000 quilômetros de trilhas tortuosas, vinte cadeias de montanhas – com picos de mais de 6.000 metros, dois planaltos desérticos, canyons e gargantas profundas, poderosos rios de montanhas – Jinsha/Yangtsé, Lancang/Mekong, Nujian/Salween, e seus afluentes não menos avassaladores.
Mercadores formavam caravanas, algumas de uma quinzena de cavalos e mulas, outras de até trezentos animais. Cavalos – e iaques, a partir das planícies tibetanas – eram bem alimentados, com manteiga na ração, para aguentarem a dura travessia de quase um ano: seis meses para ir, e seis meses para voltar. Consultava-se um xamã para escolher o melhor dia da partida, e um batedor contratado para abrir caminho por trilhas seguras. Precipícios, animais ferozes (lobos, tigres), saqueadores e ladrões, torrentes de degelo, avalanches e deslizamentos eram ameaças constantes. O alimento levado por cada caravaneiro durava apenas algumas semanas. Para o resto da viagem, tinham que se virar nas paradas. Vilarejos se alvoroçavam para receber as caravanas, havia estalagens de várias categorias. Pelo trajeto, já se fazia intensa troca: esvaziavam-se algumas cargas, e outros produtos adquiridos, para se trocar adiante. Os cavalos conseguiam fazer no máximo 30 quilômetros por dia, os iaques, 20 quilômetros. Além das necessidades individuais, a principal preocupação dos caravaneiros era com os animais: prover-lhes suficiente forragem era primordial, conferiam-se cascos amiúde, patas inchadas e feridas tratadas com unguentos.
No fim do século XIX, Dinastia Qing, algumas pontes de ferro em lugares seguros já facilitavam a travessia de rios turbulentos. Para encurtar distâncias, canyons eram transpostos através de cabos de aço. Cavalos experientes atravessavam sozinhos. Mas cavalos novatos de primeira viagem tinham de ser acalmados, com palavras e massagens relaxantes. Preparando-os para a travessia, cuidava-se para evitar que eles enxergassem o precipício, e o caravaneiro que fizera o “shiatsu” atravessava junto, abraçado ao animal. Qualquer nervosismo ou agitação, os dois poderiam mergulhar 1000 metros abaixo, e nunca mais seriam vistos. Com devidos cuidados, porém, a travessia se fazia numa nice, cavalo e caravaneiro em sereno zen, como se estivessem praticando tirolesa no rio Atibaia. Momento emocionante do filme.
Monges que iam difundir budismo tibetano na China, e noviços chineses em busca de estudos em monastérios tibetanos, já usavam essas trilhas, séculos antes de se tornar caminho de comércio de chá, cavalos e produtos infinitos. Seu uso declinou quando o governo republicano (1912-1921) abriu estradas asfaltadas e construiu pontes. Durante a II Guerra, com o bloqueio de portos e estradas ao norte da China pelos japoneses, a Rota reviveu brevemente. A partir dos anos 1960, o governo comunista construiu autoestradas como Yunnan-Tibete e Sichuan-Tibete; a Rota definhou por completo, para uso apenas local. Enriquecimento da população, apelo da História, desenvolvimento do turismo nas províncias a sudoeste da China, e crescente peregrinação aos santuários budistas do Tibete, fizeram trechos da Rota do Chá e do Cavalo voltar a despertar. Turistas e peregrinos chegam às centenas todos os dias a Lhasa – muitos, pelas milenares trilhas repletas do misticismo de antigas lendas, aventuras, e devoção.