Rota do Chá e do Cavalo: O Chá “Pu’er” (I)
8 de outubro de 2010
Por: Naomi Doy | Seção: Depoimentos | Tags: Camellia sinensis, chá fermentado, Pu’er, Xishuangbanna, Yunnan
Reprisado pela TV5-Monde, Sur la route légendaire du thé, produção franco-chinesa de 2007, este belíssimo documentário em três episódios nos desvenda a lendária Rota do Chá e do Cavalo. Quase desconhecida no Ocidente até o século XX, ligava o Sudoeste da China – atuais províncias de Sichuan, Yunnan e Qinghai – à Lhasa, no Tibete, através de planícies e platôs a 2000 metros de altitude, entre montanhas nevadas, traiçoeiros penhascos e desfiladeiros, e florestas selvagens. Na região conhecida como “teto do mundo”, dos mais inóspitos lugares da Terra.
No milênio que antecedeu a era cristã, quando a China mantinha com sucesso o monopólio do bicho da seda e da sua produção, a Rota da Seda ligava chineses ao mundo mediterrâneo, proporcionando intensa troca de cultura e comércio de raras e valiosas mercadorias. Mas a origem e a principal base do longo e contínuo comércio Leste-Oeste através dessa rota estava na troca da seda chinesa por cavalos da Ásia Central. Cavalos, de primeira necessidade para o imenso território: para transporte e segurança, para abastecer o exército do país. Quando o segredo do bicho-da-seda foi quebrado, a seda começou a ser produzida desde a Índia ao Bizâncio, e se tornou produto mediterrâneo. A China perdeu definitivamente o monopólio que era a razão de ser da Rota da Seda; mas continuava a precisar dos cavalos da Ásia Central. A partir da Dinastia Tang (séc.VII d.C.), os chineses descobriram outro produto muito apreciado por povos do Tibete e da Ásia Central, e entre nômades da Mongólia: o chá, proveniente das folhas da Camellia sinensis largamente nativa no Sudoeste da China, mas não cultivável nos gelados platôs tibetanos, nem nas estepes ou desertos da Mongólia. Rica moeda de troca por cavalos.
Em Yunnan, nas regiões subtropicais ao Sul, entre Xishuangbanna e Pu’er, a Camellia sinensis constituía-se de árvores centenárias. Suas folhas serviam a culinária local como comida e como infusão para bebidas. Conferiam-se muitas propriedades benéficas ao chá feito com essas folhas. No século VI a.C., Laozi já apregoava a infusão como ingrediente do “elixir da vida”. Por volta do séc. II d.C., estudiosos chineses consideravam o chá como preventivo para vários males e importante suplemento dietético; restaurativo, acreditava-se que beber chá verde amargo diariamente fazia pensar melhor.
Chang’an (atual Xi’an), capital da Dinastia Tang, era a maior e mais populosa cidade do mundo, com quase um milhão de habitantes. Principal saída para a Rota da Seda, gente de todas as partes do mundo ali convergiam. O hábito chinês de beber chá se tornou cativo entre forasteiros; caravaneiros logo começaram a comprar e comerciar grandes quantidades de chá. Na época das Dinastias Tang e Song (anos 750 a 1000 d.C.), o consumo do chá se propagou pelo Tibete, entre o povo, e nos templos e palácios. O mais apreciado pelos tibetanos, desde então, é o pu’er, de Yunnan. O consumo se difundiu largamente durante a Dinastia Yuan (1271-1368) e se tornou fonte de economia para a China durante os anos Ming (1368-1644). Folhas fermentadas do chá pu’er eram fervidas; misturavam-se então sal, cevada torrada moída, e manteiga de leite de iaque – resistente bovino domesticado do planalto tibetano, com longa pelagem, e usado no transporte de carga pelos íngremes caminhos das montanhas.
Esse chá leitoso se tornou alimento básico dos planaltos, fornecendo nutrição e caloria nas gélidas altitudes – onde careciam vegetais frescos que provessem vitaminas necessárias para nivelar a tradicional dieta rica em carne e laticínios. O chá viria contribuir para a saúde e bem-estar geral da população, aquecia o corpo, prevenia rachaduras nos lábios. O bod já, o chá tibetano, continua sendo muito consumido em todas as províncias chinesas do Sudoeste, e para além das fronteiras tibetanas, em Butão, Nepal, Sikkim. Para ocidentais, o sabor desse chá pu’er amanteigado é para paladar adquirido – tem gosto rançoso e aroma bastante forte. Mas nas elegantes casas de chá de Xangai a Beijing, e de São Francisco a New York e alhures, tomar chá pu’er, puro, de origem e safras diferenciadas, e pontos de fermentação e bouquets distintos, torna-se, a cada dia, hábito refinado de connaisseurs.
(Breve a segunda parte)