Sensibilidades Diferentes Sobre Uma Mesma Cena
20 de março de 2011
Por: Naomi Doy | Seção: Depoimentos, Editoriais | Tags: A Grande Onda de Hokusai, charges sobre o tsunami
Com colaboração de Paulo Yokota
Katsushika Hokusai (1760-1849), natural de Edo (antiga Tóquio), pintor xilogravurista, é um dos mestres do ukiyo-ê, “pinturas do mundo flutuante”. Observador atento da natureza e do ser humano, seus trabalhos retratam a vida cotidiana e o homem comum da Época Edo (1608-1868). A Grande Onda de Kanagawa é sua mais conhecida obra; faz parte das “36 Vistas do Monte Fuji” em que Hokusai retrata o sagrado monte dos japoneses, sob várias perspectivas (circa 1826-33).
Note-se o poder avassalador da natureza: a imensa onda parece querer encobrir tudo. O Fuji-san aparece pequenino ao fundo, homens em três barcaças enfrentam corajosamente a grande maré. São pescadores levando peixe para mercados da Baia de Edo. É um quadro com muito movimento: a luta dos pescadores, os barcos balançando, as enormes ondas levantando espumas – um solene e estático Monte Fuji a tudo contempla. Acredita-se que Hokusai tenha se inspirado num grande tsunami de mais de cinco metros de altura que sacudiu o nordeste do litoral japonês em 1700, após um terremoto de magnitude nove, do qual ele deve ter ouvido relatos anos mais tarde. Hoje sabemos que o tsunami difere das grandes ondas.
É a pintura mais famosa de Hokusai, quiçá a mais conhecida pintura japonesa no ocidente. Por ilustrar símbolos sagrados do Japão – o Monte Fuji e o mar, fonte de vida que cerca o arquipélago -, é um cenário muito venerado pela cultura japonesa, e que diz muito da sua alma.
Por isso, foi com dupla e dolorosa incredulidade que deparamos na página dois do jornal Folha de São Paulo do dia 12 último, a charge fazendo troça da tragédia do tsunami do dia anterior, em cima desta obra de Hokusai. Como poderia o editor de um jornal de penetração permitir publicar tal gozação, logo no dia seguinte à maior tragédia daquele país? E pior, anônimo: como se o responsável já temesse a reação dos leitores. Depois ficamos sabendo que o autor era jovem de 14 anos. Cartunistas do mesmo jornal se apressaram em sua defesa, enaltecendo a “beleza artística” da charge. “Coleguismo” oblige. A ombudsman da Folha comenta hoje o dilema, mostrando outras charges semelhantes publicadas mundo afora, mas na lide da matéria registra: “É um engano pensar que cartunista pode tudo, mas é difícil decidir o que pode ser publicado quando se trata de ilustrar tragédias”.
Perdoam-se imaturidades. Mas por mais jovem que seja um ser humano, espera-se dele sensibilidade e compaixão – coisa que até bichos e pássaros demonstram para com seus iguais. Como nos sentiríamos brasileiros em geral se algum jornal, de qualquer país, publicasse piada sobre a tragédia da serra fluminense em cima de imagem do Cristo do Corcovado (ícone do país, como também o é A Grande Onda) deslizando em lama, no dia seguinte ao desastre?
Ninguém nasce preconceituoso. Um indivíduo se imbui de influências que o cercam desde tenra infância, no meio familiar, social, racial. Conforme vai amadurecendo, pode ir alcançando discernimentos que mudem suas idiossincrasias, xenofobias e intolerâncias adquiridas. Ou não: quanto mais seus horizontes forem estreitos, menor será sua capacidade de crescer e discernir. Aliás, realidade triste aqui, acolá, a começar pelo Japão, há uma juventude consumista e egoísta, insensível e superficial. Claro, com exceções honrosas: a globalização em muito vem contribuindo para criar cidadãos do mundo, abertos e esclarecidos, aptos para entender e praticar tolerância, sensibilidade, humanidade, espiritualidade e, sobretudo, humildade. Como os grandes mestres.
“Se os céus me tivessem concedido pelo menos dez, cinco anos (de vida) mais, eu poderia ter me tornado um artista de verdade.” – Hokusai, pouco antes de falecer aos 89 anos de idade.
Não há dúvida nenhuma que os que sofrem mais influência da cultura japonesa se sentem mais ofendidos com estas charges, mesmo que tenham o maior respeito pela liberdade de imprensa e artística.