Peixes do Outono Japonês e o Ritual Imutável da Natureza
4 de outubro de 2011
Por: Naomi Doy | Seção: Depoimentos | Tags: cavala na rotina da culinária japonesa, desova do salmão coho, NHK, pescas de outono no Japão, sanma-no-shioyaki (cavala grelhada ao sal)
Maior rio do Nordeste japonês, o Rio Kitakami, nasce nas fontes de Yuhazu, nos platôs do Monte Iwate e corta a cidade de Morioka, capital da província de Iwate. No seu trajeto direção Sul, ao longo de 250 quilômetros pelo interior Norte da Ilha de Honshu, recebe dezenas de afluentes e dá origem a outros tantos defluentes, desaguando no Oceano Pacífico – na foz da Baía de Ishinomaki, já na província de Miyagi. Uma atração de outono em Morioka é a observação da subida de salmões coho que buscam as cabeceiras desse rio e seus afluentes para desovar. Perguntava-se com apreensão se salmões retornariam este ano às desembocaduras de rios no litoral devastado de Tohoku. Na semana passada, gente que atravessava ponte sobre o Rio Nakatsu, um dos afluentes que também banha Morioka, se enterneceu com a visão de vários salmões nadando rio acima. Alguns já com barrigas avermelhadas, que indicam proximidade de fecundação.
O retorno dos salmões do Pacífico aos rios onde nasceram e passaram os primeiros meses de vida, é dos fenômenos intrigantes da natureza, desde o Estreito de Bering às costas do Japão, Alasca, Canadá, EUA. Bilhões de salmões viajam centenas de quilômetros para voltar ao exato local onde nasceram para desovar e morrer. Predadores como ursos esfomeados também espreitam esse retorno. Na tenaz jornada, nadam contra a força da correnteza, saltam cachoeiras, se machucam nas corredeiras pedregosas. Após o ritual da desova, as ovas são fecundadas pelo macho que acompanha a fêmea. Exaustos pela longa viagem em que ficaram dias sem se alimentar, retomam o caminho de volta, mas a maioria morre. Seus corpos alimentarão outros seres ao longo dos rios, e nutrirão seus próprios alevinos. Salmões, como todo peixe, só voltam a rios límpidos e cristalinos.
Salmão coho, barrigas avermelhadas, nadando rio acima; cavala grelhada
Rio Kitakami, Morioka, Iwate; ponte sobre o rio Nakatsu, Morioka, Iwate
Cidades pesqueiras do Nordeste japonês afetadas pelo tsunami estão em estuários de rios saudavelmente limpos que descem de montanhas geladas. Nas baías que circundam os estuários, vicejavam bem cuidadas fazendas de criação de alevinos, e de algas, moluscos, crustáceos. Enquanto piers e ancoradouros do outro lado recebiam movimento incessante de barcos que partiam e voltavam carregados de umi-no-sachi (frutos do mar), e de outros que vinham de longe em busca dos produtos colhidos. Outono é alta temporada da pesca de sanma (cavala do pacífico), o mais popular e tradicional peixe consumido no Japão. Preparada de diversas maneiras, a cavala fresca é simplesmente incomparável grelhada apenas com sal.
Com portos ainda em restauração, a pesca se reduziu ao mínimo ao longo das três províncias mais atingidas. Ishinomaki, Onagawa, Kesennuma, Rikuzen Takata, Ofunato, Kamaishi, Miyako, e tantos outros centros pesqueiros voltam aos poucos ao normal. O porto mais próximo a estas cidades, não afetado pelo tsunami, é o de Hanasaki, na cidade de Nemuro, província de Hokkaido – mesmo assim, a centenas de léguas de Miyako, no Nordeste de Iwate. Hanasaki tomou as rédeas em união solidária com outros portos do Leste de Hokkaido, e assumiram toda a pesca de época da cavala. Normalmente, as cidades das províncias de Miyagi e Iwate contabilizavam diariamente de 2.000 a 3.000 toneladas de sanma-no-mizuague (pesca e descarregamento de cavala), em outubro. Para suprir a demanda, Hanasaki e mais três portos de Hokkaido estão realizando o mizuague de mais de 4.000 toneladas diárias de cavala, o dobro do que processam normalmente. Para isso, contam com mão-de-obra extra de pescadores de Tohoku, e empresas de outras províncias estão cedendo gelo e caminhões refrigerados para atender consumo em mercados de Kantô e Kansai – regiões de Tóquio e Quioto. Ishinomaki, na foz do Rio Kitakami, o sáke-no-mizuague (pesca e descarregamento de salmão) está começando timidamente. Após meses recuperando cais, barcos, redes, refrigeradores, no dia 27 de setembro, 14 pescadores saíram em dois barcos para a primeira pesca de salmão pós 11 de março. O resultado positivo trouxe júbilo e esperança (NHK).
Minami Sanriku, Miyagi, dos maiores portos de pesca de salmão, captava cerca de 1.900 toneladas/dia na safra. Em meio ao desastre, todas as três instalações para a fertilização artificial de ovas de salmão e as incubadoras de alevinos também foram levadas. Para garantir cardumes de salmão para os próximos anos, a cidade se mobilizou, e acabam de reconstruir a primeira instalação. Ela poderá comportar até cinco milhões de alevinos em cativeiro, que serão soltos na baía em alguns meses. Com mais alevinos cedidos por criadores de Kesennuma, Minami Sanriku espera restabelecer a normalidade em breve. Kesennuma, pioneira em fazendas e experimentos marinhos, é sede de ONG pela preservação do equilíbrio florestas x águas, Mori wa umi no koibito (algo como “Florestas enamoradas pelo mar”).
Após o primeiro feliz mizuague de salmão em Ishinomaki este outono, Koichi Nakazato, líder comunitário, contemplava reflexivo o sereno mar a perder de vista, do oceano dito Pacífico, mas que de tamanha destruição é capaz. Entretanto, o veterano pescador de tantas batalhas agora conseguia enxergar apenas águas abençoadas, berço de milenares dádivas.