Sessão Nostalgia Com Akira Kurosawa
27 de março de 2010
Por: Naomi Doy | Seção: Livros e Filmes | Tags: cineasta japonês, Os Sete Samurais, Ran, Rashomon, Toshiro Mifune, Trono Manchado de Sangue | 9 Comentários »
Machiko Kyo interpreta Masako Kanazawa em Rashomon
Incrível como gente da minha geração se lembra com detalhes da primeira vez a que assistiu Rashomon (1950), tanto esse filme marcou a nossa infância, comentado pelos pais e tios, como a nossa juventude, reprisado e discutido tantas vezes nos grêmios estudantis, centros acadêmicos e salas de cinema de arte.
A minha primeira vez foi no antigo cinema da cidade de Bastos, a oeste do Estado de São Paulo, julho de 1953. Naquele ano, os organizadores da Festa do Ovo (Nyushoku-sai) devem ter movido céus e terras para terem o privilégio de apresentar o filme ao longo da festiva semana bastense. Passando férias escolares em casa de tios, juntos, irmãos e primos, fomos conferir o filme mais comentado da comunidade nikkei daqueles tempos. Um tio, Morio Oda, fotógrafo diletante e intelectual de vanguarda na então borbulhante Bastos, nos orientou: que prestássemos atenção no modo como as cenas foram filmadas, o slow-motion, a fotografia feita com o cameraman em movimento acompanhando a cena, os raios do sol filtrando através de galhos e folhas e seguindo a dama (Matiko Kiyo) levada no dorso do cavalo; a chuva torrencial caindo em cascata, a câmera apontada diretamente para o céu, contra a chuva, contra o sol. Sim, senhor: saímos compenetrados de casa, era filme de gente grande, de respeito. Todos éramos crianças entre nove e doze anos de idade…
Se quase nada captamos do enredo, a fotografia em preto e branco e as “dicas” do tio permaneceriam gravadas para sempre na minha memória. Anos mais tarde, ficaria sabendo que, durante as filmagens do temporal, Kurosawa não se satisfazia com a cena do aguaceiro, repetida à exaustão, porque a água que caía – provida por caminhões de bombeiros – não se sobressaía contra o céu, no filme, como ele queria. Desenhista e pintor experiente, resolveu então tingir a água de preto com sumi (tinta de caligrafia) até que atingisse efeito de forte aguaceiro.
A técnica de filmar diretamente contra o sol e o slow-motion seriam imitados ad nauseam daí em diante por cineastas do mundo inteiro.
Já em São Paulo, anos 60, para quem residia na Zona Oeste era uma viagem ir à Liberdade assistir aos filmes japoneses. Kurosawa, porém, era exceção: por terem forte apelo ocidental, seus filmes passavam fora do circuito da Liberdade, nos imensos cinemas do centro: Marrocos, Paissandu, Ipiranga, Olido, e até em cinemas de bairro: o Cine Goiás, no Largo de Pinheiros, e o Cine Jardim, na Rua Fradique Coutinho.
Para realçar a atmosfera, Kurosawa recorria muito a elementos da natureza, como o aguaceiro citado na abertura de Rashomon (1950) e na batalha final de Os Sete Samurais (1954), a brava canícula em Cão Danado, vento gelado em Yojimbo (1961), a neve em Viver (1952), ou o nevoeiro em Trono Manchado de Sangue (1957, baseado em Macbeth).
Exigente ao extremo, tinha um estilo ditatorial de dirigir; apelidaram-no Tennô, o Imperador. Perfeccionista, se exasperava para alcançar o desejado efeito visual. Na cena final de Trono Manchado de Sangue, em que o ator Toshiro Mifune é alvejado por flechas, Kurosawa usou flechas de verdade atiradas de uma distância curta por arqueiros treinados, que chegavam a poucos centímetros do corpo do ator. Em Ran (1985), fez construir um castelo com muralhas e fossos, ao sopé do Monte Fuji, só para ser completamente incendiado, em cena apoteótica. Coisa rara entre diretores, ele mesmo editava seus filmes, durante a produção; após a filmagem de cada dia, era comum vê-lo trabalhando na sala de cortes.
Críticos japoneses consideravam-no ocidental demais, mas ele foi sempre profundamente influenciado pela cultura japonesa: a ética do samurai, a arte teatral do Noh e o gênero japonês de dramas de época (jidaigueki) estão arraigados em suas obras. O estilo do teatro Noh influenciou substancialmente filmes como Ran (1985). Versão de Kurosawa para Rei Lear de Shakespeare, Ran se passa no Japão medieval e foi certamente o maior projeto dos últimos anos da carreira do diretor. Dedicou quase uma década planejando a sua filmagem, esboçando e pincelando minuciosamente as cenas em telas. O filme foi grande sucesso internacional, e é considerado sua obra-prima.
Toshiro Mifune, seu parceiro em 16 filmes, diria que nada o orgulhava tanto quanto o fato de ter trabalhado com ele; que isso fora sempre extremamente difícil, mas que cada filme com ele era uma revelação. “Devo a ele o reconhecimento de que gozo no Japão e além-mar. Ele me ensinou praticamente tudo que eu sei, e foi o primeiro que me apresentou a mim mesmo como ator”, afirmava.
O fato de o cinema japonês ser conhecido em todo o ocidente, deve-se muito também aos filmes de Akira Kurosawa.
Hmm….fico a me perguntar até que ponto esse papo de ser visto como ocidental de mais é verdade.
Certamente não é nos dias no hoje; talvez na época dele. Fico com a impressão, embora não possa comprovar, de que essa é um dessas observações feitas por gente que não conhece a sociedade japonesa por dentro e aceito sem restrições pelos ocidentais.
Não conseguir verba para filmes não diz muito também. O próprio James Cameron teve o mesmo problema para financiar o Avatar. O problema é que tanto o Cameron como o Kurosawa tiveram fracassos. Quem garante que o próximo trará lucro aos financiadores?
“Os Sete Samurais” foram muito bem aceitos aqui pela crítica e pelo público, o que não é difícil de entender para quem assistiu o filme.
É lembrado por gente da minha geração como o primeiro japonês a ganhar prêmio de cinema do exterior (não falo do Oscar, já que ele ganhou é de “menção honrosa”) e que a mesma geração vê com desgosto que o Beat Takeshi tenha ganho o mesmo tipo de prêmio…..Não há muito de ser visto como “ocidental” nisso. Pelo menos nos círculos que frequento.
Até hoje, qualquer locadora de vídeo que tenha um acervo que vá além dos últimos hits do momento tem a obra completa do Kurosawa, juntamente com a do Tora-san. Mas isso é outra estória.
Caro Roberto Tongu,
Não tenho nenhuma dúvida sobre a importância de Akira Kurosawa na cinematrografia mundial. E também V tem razão sobre os problemas de financiamentos de obras de envergadura, dificil para todos.
Certamente V. não tem a vivência dos pontos de vista dos japoneses, talvez dos mais idosos, que admiram mais Ozu e outros pioneiros, que digo serem mais “intimistas”, como é mais condizente com o espírito japonês.
No Ocidente pouco se conhece da produção asiática, que é muito volumosa, não só japonesa, de Hong Kong com a da Índia. Precisamos dar conta que naquela parte do mundo vivem 60% da população mundial, e somente uma parte da produção cinematográfica deles vem para o Brasil, e até mesmo para o Ocidente.
O que acontece naquela parte do mundo pode parecer estranho. Uma “novela” brasileira, a “Escrava Izaura” é a mais conhecida da China, pois foi repetida anos e anos, durante todo o período em que a China não importava filmes do Ocidente, e uma artista brasileira conhecida, ficou afirmando inverdades como se a escravidão continuasse corrente no Brasil até os dias de hoje.
O esforço deste site é tentar apresentar os pontos de vista de ambos os lados, de forma que o melhor conhecimento recíproco ajude na convivência entre povos que possuem culturas diferentes.
Paulo Yokota
Paradoxal como possa parecer, Kurosawa era considerado “ocidental demais” no Japão, nos meios da crítica especializada japonesa. Talvez o estilo vanguardista do diretor não fosse compreendida pela “intellighenzia” local.
O ocidente, porém, sempre se sentiu apreendendo muito da cultura e do espírito japones através de seus filmes. O Brasil, também, claro, em todas as gerações nikkeis ou não-nikkeis.
Acho que deveriam reprisar, também, o filme “Homem mau dorme bem” (Warui Yatsu Hodo Yoku Nemuru), também do mestre Kurosawa. Esse filme, de 1960, fala de corrupção numa empresa. E fica no ar uma perguntinha incômoda: como o presidente Lula consegue dormir bem quando se sabe que no país são praticados quase 50 mil assassinatos por ano, sem contar os milhares de assaltos, furtos, agressões, linchamentos e outras formas de violência?
Caro Jaime Pereira da Silva,
Lamentavelmente, desde que o os seres humanos existem, isto aconteceu em maior ou menor escala, se não haveria neum um filme do Kurosawa sobre o assunto. Não é uma exclusividade brasileira. Este site não concorda com posições atribuidas somente a um grupo, pois não corresponde à triste realidade.
Paulo Yokota
Assisti recentemente o filme Rashomon, pois não tinha ainda assistido (estava difícil de conseguir).
Um enredo muito bom.
Realmente para assistir o filme e entender o sucesso que teve devemos estudar como foi feito e quais os efeitos inéditos para a época.
Agora fica a pergunta: Qual será que é a versão verdadeira da estória?? Alguma dica??
Abraços
Frank
Caro Frank Honjo,
Acredito que no filme Rashomon, que nasceu da fusão de dois contos, Kurosawa tenta nos ensinar que mesmo numa realidade objetiva como um crime praticado, existem versões que são de diversos participantes. Não há uma só verdade, todos nós temos diferentes pontos de vista, do prisma que observamos, como quase tudo que acontece na vida real. Não podemos ter a arrogância que somos o dono da verdade, mas respeitar os pontos de vida dos outros também.
Paulo YOkota
[…] admirado no exterior do que dentro do próprio Japão. No mesmo blog, a pesquisadora Naomi Doy faz uma análise do filme Rashomon, exibido na Mostra Br de Cinema deste ano, em versão digitalmente restaurada. […]
Caro Jo Takahashi,
Todo o seu trabalho relacionado com o centenário de Akira Kurosawa está nos enriquecendo a todos com informações adicionais sobre esta obra-prima dele que é Rashomon. A exposição do storyboards dele no Instiuto Tomie Ohtake e o livro de Teruyo Nogami editado pela Cosac-Naify tornam as comemorações inesquecíveis. Os nossos agradecimentos, incluindo o da Naomi Doy.
Paulo Yokota